domingo, 14 de junho de 2009

O livro secreto da ditadura

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livro secreto da ditadura
Publicado em 14.06.2009

Jornalista revela detalhes inéditos dos porões do regime militar contidos no “Orvil”, livro jamais publicado, no qual o Exército conta sua versão dos fatos

Sérgio Montenegro Filho
smontenegro@jc.com.br

Uma tentativa de revide que se transformou numa confissão de atos até então jamais esclarecidos. É dessa forma que o jornalista e escritor mineiro Lucas Figueiredo resume o “Orvil”, livro secreto escrito por um grupo de militares do antigo Centro de Inteligência do Exército – o temido CIE. Concluído em 1987, o “Orvil” – palavra “livro” escrita ao contrário – dormiria por quase 20 anos nas gavetas de um seleto grupo de oficiais, até ser revelado e esmiuçado nos mínimos detalhes pelo repórter na sua mais nova obra, Olho por Olho - Os livros secretos da ditadura, lançado este mês pela Editora Record.

O livro de Lucas Figueiredo é o somatório de um poderoso trabalho de pesquisa, investigação e entrevistas com personagens da época ainda vivos. E revela mistérios até hoje guardados a sete chaves pelas Forças Armadas, como o destino dos corpos de vários militantes da esquerda armada, dados como “desaparecidos” pelas forças de repressão ou sobre os quais os militares alegavam não ter qualquer conhecimento. Traz ainda depoimentos inéditos de agentes e militantes de esquerda, contidos no “Orvil”, sobre passagens importantes da ditadura, como o combate no Araguaia e ações da guerrilha urbana pelo País.

O relato é feito a partir da visão dos militares, sem deixar, porém, de checá-la e fazer contrapontos com depoimentos e documentos obtidos pelas entidades de direitos humanos ou inseridos em obras de estudiosos e ex-militantes. Olho por Olho é, na realidade, a consolidação de uma série de reportagens publicadas por Lucas Figueiredo simultaneamente nos jornais Correio Brasiliense e O Estado de Minas, que em 2007 lhe rendeu o Prêmio Esso de Jornalismo.
LEI DE TALIÃO O “Orvil” foi elaborado entre 1985 e 1987 por um grupo de militares do CIE – a partir de centenas de documentos das Forças Armadas –, sob encomenda do então ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves, durante o governo de José Sarney. A idéia do general era rebater as afirmações surpreendentes contidas no livro Brasil: Nunca Mais, maior e mais detalhada obra já escrita sobre a ditadura militar instalada em 1964.

Na introdução de Olho por olho, Figueiredo explica em detalhes a elaboração de Brasil: Nunca Mais, trabalho de fôlego realizado em segredo, durante seis longos anos, por um grupo de advogados, jornalistas e religiosos, sob o comando do então Cardeal de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns. Sua publicação, em 1985 – diz o autor – deixou irada a cúpula militar. E para contar a sua versão dos fatos, mais uma vez valeria a babilônica Lei de Talião: Agora, porém, em vez de armas contra armas, seria livro contra livro.

O rebote dos militares levou apenas dois anos para ficar pronto, graças ao acesso fácil às documentações e demais registros sobre a repressão. Em 1987, porém, ao apresentar a obra a Sarney, o ministro Leônidas amargaria uma última frustração: o presidente vivia um momento politicamente delicado, e proibiu sua publicação. Alegou que, após as delicadas costuras políticas que levaram à redemocratização, não pretendia reabrir antigas feridas de lado a lado, que considerava ainda “em fase de cicatrização”.

Indignado, mas disciplinado, o general guardou o original. Antes, porém, produziu 15 cópias, que distribuiu entre um punhado de oficiais de alta patente próximos a ele, ordenando que não houvesse novas reproduções. “O surpreendente é que a ordem foi acatada durante quase duas décadas”, escreve Lucas Figueiredo, que somente há dez anos teve acesso a uma cópia. “A primeira vez que ouvi falar que no Orvil foi em 1998, quando fazia a pesquisa do meu livro Ministério do silêncio, sobre a história do serviço secreto brasileiro. Um ex-torturador, me contou, e nos sete anos seguintes tentei botar a mão nele”, conta o autor.

Em 2007, quando visitava uma fonte militar, Figueiredo esbarrou num exemplar do Orvil. “Notando meu interesse pelos seus livros, ele (o militar) começou a mostrá-los e comentar. Quando eu já estava com uma pilha nos braços, ele disse: Ah, este aqui você vai gostar! E me mostrou dois grossos volumes de capa preta. Era uma das quinze cópias do Orvil”, conclui.
“Orvil” revela paradeiro de vítimas

Publicado em 14.06.2009

O livro do jornalista Lucas Figueiredo se divide em capítulos que abordam os principais temas do “Orvil”. No maior e mais denso deles, intitulado Tributo a Soljenítsin, o jornalista narra a confecção propriamente dita do livro secreto, desde a montagem da equipe até a conclusão, contando como aconteceu a escolha, pelo ministro Leônidas Pires Gonçalves, do coronel Agnaldo Del Nero Augusto – então chefe do Serviço de Informações do CIE – para coordenar o processo. Anticomunista confesso, Del Nero era o responsável pelos arquivos militares da repressão. Leitor culto, estudava a fundo obras de escritores comunistas. Seu preferido era o russo Alexander Soljenítsin, autor de Arquipélago Gulag, obra na qual critica o funcionamento dos campos de concentração criados pelo líder soviético Joseph Stalin. É dele a frase: “Aquele que recorda o passado perde um olho, e aquele que o esquece, perde os dois”.

No capítulo seguinte, Os guardiões, o jornalista destaca a negativa de Sarney em publicar o livro, a insatisfação da alta cúpula da caserna com a proibição e a distribuição secreta dos únicos 15 exemplares. Entre os que tinham conhecimento do “Orvil” estavam o próprio Leônidas, Del Nero e o general Sérgio Augusto de Avellar Coutinho, diretor do Clube Militar.

Mas a principal referência recai sobre outro guardião: o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe da Seção de operações do CIE e ex-comandante do temido DOI-CODI de São Paulo, citado por ex-militantes como responsável por várias sessões de tortura. Em comum, todos eles publicaram livros contando suas próprias versões da repressão.

Os demais segmentos de Olho por Olho são dedicados à confrontação dos dados do “Orvil” com as informações colhidas por entidades ligadas aos direitos humanos e junto aos autores de Brasil: Nunca Mais. Nesse bloco, Lucas Figueiredo transcreve trechos do livro secreto da ditadura, expondo inverdades sobre prisões, torturas e mortes de militantes, aliadas a novas versões dos militares para vários casos. Em algumas delas revela, de forma inédita, o paradeiro de corpos de guerrilheiros classificados como “desaparecidos” após confrontos como o do Araguaia e episódios de guerrilha urbana.

Por último, o autor traz o pensamento da caserna a respeito da redemocratização, demonstrando que, encerrado o período de exceção – e embora tendo ganhado a “briga contra o comunismo” –, a célula responsável pelo “Orvil” ainda apostou durante anos em uma nova confrontação. Figueiredo identifica, ainda, vítimas inocentes da repressão, mortas apenas por estarem “em lugar errado, na hora errada”.

No epílogo, o jornalista relata onde e como vivem atualmente os principais personagens dessa história, desde o Cardeal Arns ao ministro Leônidas e seus comandados. E conclui com o recuo dos militares, que terminaram por tornar público o “Orvil”, hoje encontrado em vários sites da internet e bibliotecas de entidades civis.

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