terça-feira, 7 de julho de 2009

Raul Longo: O DESMONTE DE UM IMPÉRIO

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Desmontando impérios - de Constantinopla a Honduras

Raul Longo

Desmontar um império não é tão simples quanto construí-lo. Se os constrói pela força, associada à espoliação dos imperializados para financiamento dos exércitos e a desumanização tanto do próprio povo do estado imperalizante quanto dos imperializados.

A força é coisa relativamente simples. Convocada com o condicionamento das massas ou contratada entre mercenários, se as treina militarmente sempre promovendo a obtusidade de cada integrante, se transforma homens em máquinas de matar e de conquistas beligerantes. Já os processos de desconscientização e desumanização das massas requerem um pouco mais de táticas condicionantes. O "pão e circo" do ImpérioRomano, o "lumpemproletariado" do Império Napoleônico, a "supremacia racial" do nazismo, o ópio aos chineses no Império Britânico, o "american way life" do Império Norte-Americano.

Um elemento muito importante em tudo isso é o maniqueísmo: Deus está conosco. Nós somos o mundo livre. Somos a democracia ou O povo escolhido. A crença em uma superioridade racial ou nacional, provida de exclusiva inteligência e conhecimentos e, consequentemente, a que tem o direito de determinar o que seja bom ou mal para os demais povos que, sem tal tutela e controle, não se sustentariam.

Não é tão difícil se desenvolver tais conceitos: além da estupidificação planejada, aproveita-se oportunamente as situações eventuais ou criadas, aliciando os sempre disponíveis políticos e militares corruptos entre as nações imperializadas, impondo períodos de regimes totalitários ainda que paradoxalmente em nome das liberdades divinas e igualitárias. Falácias, é verdade, mas quando as massas se deixaram controlar se não por falácias?

A força não controla. A força impõe. Se assim se pode dizer, o Império Britânico foi o último império autenticamente mantido apenas pela força de seus exércitos, assim como o Romano provavelmente tenha sido o primeiro a utilizar a falácia da Igreja Católica para evitar seu completo desmonte, ainda que não o único a recorrer aos consórcio dos manipuladores de crenças dos povos. Mas tentar o processo inverso, pode acelerar a ruptura, o desmantelamento do Império. E ainda que muito difícil, preferível ao processo civilizatório o desmonte do que o desmantelamento que nunca se sabe pelo que pode ser sucedido.

Daí a substituição do Império Romano pelo Católico, apesar de todo o obscurantismo da Idade Média, talvez ainda tenha sido menos pior (e aqui cabe bem a licenciosidade) do que um muito provável retorno ao barbarismo, ainda que à custa de cruéis processos inquisitórios de condicionamento. No entanto, convém notar que a despeito das fortunas arrecadadas ao longo de todo seu histórico, o Império Católico encontra-se política e financeiramente ameaçado dentro de sua própria fonte de recursos de poder: a crença em seus cânones que, se ainda garantem alguma arrecadação em diversas comunidades espalhadas pelo mundo, sobretudo no hemisfério sul, há muito não seria suficiente sequer aos seus custos de manutenção, não houvesse desenvolvido organizações empresariais e outras formas mundanas de arrecadação de capital.

O desmonte, em curso, do Império Católico é sintomático e exemplar. Não caiu a estrutura da Igreja, nem caíram as igrejas. Nem mesmo Deus morreu, como anunciou Nietzsche. Mas o próprio Nietzsche alertou que o veneno que nos peja não está no conceito do divino, e sim na natureza bigúmea das falas clericais. Os papas guerreiros, soldados e generais a assassinarem mulheres e crianças em nome de Deus, fossem muçulmanos ou indígenas, não foram tão nocivos aos fundamentos do cristianismo quanto o eterno apóio a espoliação dos servos, dos pobres, dos oprimidos pelo poder das elites, em toda a história da instituição.

Em verdade os fundamentos do cristianismo, bigumeamente utilizados pelo Império Católico, sobreviveram a esses clérigos e se mantiveram como antídoto ao veneno por eles destilado, mas o mais forte cavalo não resiste indefinidamente as periódicas dosagens que, algum dia, haverá de, previsivelmente, lhe ser fatal.

Tão previsível que João XXIII tentou evitar o desmonte do Império Católico, resgatando seu poder espiritual através dos fundamentos verdadeiramente cristãos, incentivando e promovendo a Teoria da Libertação que sofreu a reação dos sucessores do episódico João Paulo I, pois sempre o mais difícil de ser desmontado em uma estrutura imperial é a consciência imperialista de seus integrantes. Para compensar, João Paulo II lançou mão da estratégia do marketing, tornando-se o papa pop. Mas, ainda que pop e com total apoio os meios de divulgação de todo o mundo, inclusive nos países de maiorias não católicas, não evitou o vertiginoso declínio da crença nos cânones da instituição.

Até quando se reafirmará a falaciloquência de Goebels sobre mentiras a se tornarem verdades? Afora o ópio, utilizado como estratégia de facilitação ao emprego das forças de seu exército, os ingleses nunca foram muito confiantes em tais estratégias, mas os Estados Unidos assumiram os métodos do Império Católico e o risco de empregá-los através da evolução tecnológica.

O Vaticano bem previra estes riscos advindos das tecnologias, tentando evitar o mais possível o advento da invenção de Gutenberg, até ter de aceitar sua irreversibilidade aderindo-o como meio de propagação de suas condicionantes. Já a tecnologia de comunicações e entretenimento nos Estados Unidos e dele para o mundo, se tornou não apenas um eficiente método de condicionamento de massas como também uma rentável indústria. Aparentemente superaram Goebels, pois os meios de comunicação, ou a mídia, não só transforma mentiras em verdades, como faz com que as massas paguem por essas mentiras a lhes ser transmitidas imperceptivelmente.

Aí está o grande segredo. Claro! A partir da percepção da mentira, impossível a manutenção da falácia. Essa foi a razão da ameaça de Gutenberg ao Império Católico, pois presumível os riscos do conhecimento aos conceitos míticos, mas ainda assim não foram Darwin ou Freud que deram início à irreversibilidade da decadência do Império Católico.

Impérios beligerantes, como o de Napoleão ou o pretendido por Adolf Hitler, caem e se desmontam repentinamente pela reação às próprias forças empregadas para sua imposição. Impérios sem a concorrência de forças correlatas ou se desmontam dentro de si mesmos, como o Romano, ou pelos próprios desgastes para sua manutenção, como o Britânico. Mahtma Gandhi com seu pacifismo ou as inúmeras revoltas anti-colonialistas do século XIX e XX não seriam suficientes para reduzir o Império onde o Sol nunca se põe à Grã-Bretanha, se os recursos extorquidos em todos os continentes do mundo não fossem exauridos pela própria corte e, principalmente, na defesa contra os movimentos imperialistas de seus vizinhos europeus. Como manter um exército colonialista em todos os hemisférios e meridianos, e ao mesmo tempo custear reações à franceses, austro-húngaros, germânicos, etc.?

Nesse sentido é que se pode dizer que o Britânico foi o último mantido exclusivamente pela força, pois se o nazista adotou a falácia da supremacia racial, tanto o soviético quanto o norte-americano adotaram a mesma falácia da igualdade entre os homens, utilizada na transformação do Romano ao Católico. Para esta transformação, Constantino teve de adotar a ideologia desenvolvida entre um dos povos dominados e inverter os conceitos que embasavam seu império. O pão e circo tornou-se corpo e espírito, os prazeres da sublimação eterna em recompensa ao sofrimento e abstinência da vida passageira.

A utopia da igualdade entre os homens não é uma primazia cristã. Com mesmo sentido esotérico, metafórico e mitológico, inclui-se entre os anseios de todas as civilizações. A divisão comunal de terras, esforços e proveitos da República Guarani no cone-sul da América foi uma realização dessa utopia através dos mitos cristãos de jesuítas católicos e o da Terra Sem-Males dos indígenas. E muito bem sucedida! A ponto de incomodar o sistema colonialista e a própria Igreja Católica, que exterminaram índios e missionários. Mas deles se herdou mais uma comprovação de que a utopia é possível. Possível e realizável uma convivência comunal sem a exploração do homem pelo homem, ou do homem pelo estado ou qualquer outra instituição.

O evento das Missões Guaranis, entre outras concretizações, poderiam ser mais prejudiciais ao Império Católico do que as investigações de Galileu, os questionamentos de Giordano Bruno, os cismas e reformas protestantes ou a pedofilia dos prelados. E aqui se denota o risco da associação do emprego da força das armas aos adventos tecnológicos de divulgação como condicionantes de massa. Enquanto apenas a imprensa mantida pelos sistemas de poder e as produções imbecilizantes de Hollywood, mais fácil convencer do heroísmo de Rambo e da covardia vietcong, mas já na guerra seguinte, com toda a demonização do islamismo e apesar da convicção da tirania de Sadam Hussein, a invasão do Iraque significou para muitos admiradores do antigo Tio Sam uma decepção similar a experimentada por diversos esperançosos na justiça do regime soviético, o episódio da invasão de Praga.

Karl Marx foi o primeiro teórico da igualdade entre os homens a planejar uma estrutura materialista e científica para a formação de sociedades baseadas nesse princípio, percebendo tais possibilidades na própria evolução ao capitalismo em substituição ao sistema feudal. Previu, na Inglaterra da Revolução Industrial, o inevitável confronto entre as classes, presumindo desse conflito uma necessária regulação do estado em promoção de um sistema sócio-econômico viabilizando a progressividade da civilização.

Marx não era visionário. Se o fosse, talvez previsse que no século seguinte o capitalismo aprofundaria ainda mais a falácia do Império Católico, prometendo as delícias do céu em vida, através da livre iniciativa onde todos teriam pretensa igualdade de oportunidades, sequer requerendo maiores abstinências, pois os prazeres que a Igreja prometia para a vida eterna seriam antecipados ao seu próprio custo, através de sistemas de crédito geradores de juros que financiariam a manutenção e desenvolvimento do sistema, contornando os cálculos das relações de mais-valia.

Se fosse visionário, talvez Marx previsse que ao invés da Inglaterra seu sistema seria adotado em um dos países europeus onde o feudalismo mais se mantinha renitente e, nesse caso, muito provavelmente alertaria a seus primeiros líderes sobre os perigos da substituição do estado regulador das relações sociais, por um estado monopolizador de iniciativas tão excludente quanto as falácias da livre iniciativa privada.

Como não foi visionário, se acusa Marx pelos erros que não previu, mas tampouco propôs ou aconselhou. Embora os anarquistas o alertassem sobre esses riscos, se opondo a regulação estatal, ainda não se apresentaram melhores ou mais realistas propostas de conscientização comunal a ponto de se desenvolver uma sociedade capaz de se auto-governar. A falácia da igualdade social no Império Soviético foi apresentada como de autoria de Karl Marx, pelo formalismo temporal de seus discursos e escritos, condizentes à sua época. Como um proponente político, o discurso não poderia ser diferente por mais que seus ideais e objetivos últimos fossem a formação de uma sociedade anárquica. Talvez nenhum texto de Marx autorize essa afirmação, mas qual a consequência social há de se imaginar e esperar de um estado verdadeiramente comunista, orientado através dos métodos marxistas?

Métodos que não permitem se interpretar Marx como um visionário, como tentam fazê-lo não só à direita, mas também os que se acreditam marxistas por apenas depreender a formalidade discursiva de Marx, repetindo-a anacrônica e extemporaneamente, sem conseguir sequer perceber o quanto se distanciam dos métodos de análise que os levariam a concluir o ridículo da própria falácia. Falácia cujos riscos, talvez, Marx tenha preferido assumir, entendendo que, assim como o capitalismo era uma evolução histórica ao feudalismo, o capitalismo de estado também o seria como estágio do processo evolutivo.

Além de interrupção dos sucessivos desgastes promovidos pelos dirigentes soviéticos, muitos viram no desmonte promovido por Gorbachev não apenas uma possibilidade de resgate dos métodos marxistas como, bem mais além disso, o mais incisivo golpe da Rússia sobre os Estados Unidos, quando este já buscava contemporizar suas relações com outro estado comunista: a China.

As dificuldades dos trabalhadores chineses por si atestam a distância às propostas marxistas, mas se o armistício entre Estados Unidos e China já desmascarava os falaciosos discursos de liberdade e igualdade de ambos sistemas, o final da União Soviética significou para a mítica capitalista e, sobretudo, norte-americana, o mesmo que significaria para as Igrejas cristãs, católica ou dela dissidentes, a descrença em satã ou nos infernos.

O que seria de Deus, não havendo o Diabo? O velho refrão de que Deus ajuda a quem cedo madruga não apenas se desmentia na constância da miserabilidade de gerações de trabalhadores que matutinamente enfrentam as madrugadas para alcançar as oficinas -- em tempo de não sofrerem descontos nos já reduzidos salários, quando se dão por agradecidos em percebê-los -- ou na disponibilidade ao laissez-faire de seus patrões; como passou a se invalidar perante a extinção do diabólico comunismo e suas pretensas ameaças à liberdade.

Se não há como acusar o manifestante de comunista, do que se o acusará por lutar por seus direitos a melhores condições de vida e trabalho, de dignidade, de terra, de teto?

Deus não morreu, mas o Diabo sim. E se o viver continuou infernal, quem é o diabo afinal? A angelical face democrática do capitalismo, não pode mais despontar os chifres de impiedoso Lúcifer a justificar seguranças nacionais através de ditaduras.

A falácia das liberdades democráticas a esconder golpes militares e assassinatos de líderes populares se desmascara e a descrença no império nos transforma a todos, comunistas ou não, em mártires ou resistentes. Sem uma igreja que ainda nos convença das celestes recompensas à cruz nossa de cada dia, mais provável assumirmos a segunda alternativa. Aqui, na América Central, ou na África, como no Oriente Médio.

Rambo, enfim, se revela o bandido, a personificação do mal. Heróis são os piratas da Somália.

Cientificamente Marx previra, através de seus métodos de análise da evolução econômica do capital, que assim se comportariam os trabalhadores no centro do capitalismo em sua época: a Inglaterra. Não teria como prever a II Guerra e a transferência deste centro para os Estados Unidos. Não teria como prever a tecnologia da indústria de comunicações e entretenimento como eficientes meios condicionantes de massa, mas previu, sim, a constante identificação das massas como povos e a crescente conscientização desses povos sobre os direitos que devem assegurar a si mesmos. Direitos comunais e de responsabilidade comunal.

Previu que enquanto o processo histórico promovesse essa realidade entre os proletários de todo o mundo, outra realidade promoveria o desmonte do império capitalista, a realidade do próprio capital que jamais se satisfaz em si mesmo e, sempre desejando mais, inviabiliza-se a si próprio.

Ainda, também além das possibilidades premonitórias de Marx, há a se considerar outra realidade: a considerável população de latino-americanos dentro dos Estados Unidos e a profunda insatisfação dos desempregados pelas falimentares corporações daquele império econômico.

A ciência pode se enganar quanto a exatidão de seus cálculos e nem sempre a localização, a cronologia ou a intensidade dos efeitos de um fenômeno ocorrem conforme a dedução alcançada por sua observação, mas a ciência não erra. Não pode errar, pois é fruto da observação da realidade e da natureza, e tanto a realidade quanto a natureza são imprevisíveis: por vezes lenta e gradual, em outras abrupta e inesperada.

Mas um império não se constrói com ciência. Para se construir um império, sim, se faz necessário os visionários. Já desmontá-los, é coisa bem mais complicada.

Será Obama mais um visionário ao estilo dos falaciosos heróis hollywoodianos ou terá a percepção científica de um João XIII para perceber os riscos do descrédito universal à instituição que representa. Os sucessores de João XXIII não prosseguiram seus métodos e aos que acompanham a evolução do declínio da Igreja nas últimas décadas, isso se faz bastante sensível em diversos aspectos. Mas, evidentemente, as realidades de uma instituição baseada em princípios espirituais, são bem menos concretas do que as realidades de uma instituição nacional.

Essas são muito mais concretas inclusive em suas forças de oposição. Se há suspeitas de envenenamento de João Paulo I, nas questões assumidamente terrenas se considera exemplar os espetáculos como o do assassinato de Salvador Allende. Mas se refém, Obama ao mundo não importará. No momento poderá significar muito e mais que Kennedy ou Lincoln, se sacrificado. Como refém, nada! Mesmo ao seu desiludido povo, não passará de mais uma falácia a colaborar com o descrédito e decadência do Império.

Se lhe facultar alguma capacidade de percepção científica da realidade, sem dúvida passará para a história por conseguir manter a dignidade de seu país entre a comunidade das nações e só em conhecimentos e know-how tecnológico, os Estados Unidos ainda pode resgatar-se como uma das grandes colaborações à evolução da civilização humana. Mas para isso necessita urgentemente de dirigentes habilidosos no difícil desmonte do Império.

Quem diria que, ao mundo, a pequena e esquecida Honduras viria a ser tão crucial na definição de um presidente dos Estados Unidos?


Raul Longo
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Raul Longo é jornalista e escritor - colabora com o blog AAA-PressAA & Afiliados


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